segunda-feira, 6 de maio de 2019

Filósofo muçulmano descobriu teoria de Darwin mil anos antes do naturalista inglês?


Recentemente, os meios de comunicação divulgaram, com ampla disseminação via Whatsapp, notícias de um filósofo muçulmano, al-Jāḥiẓ, que teria formulado a “teoria da evolução” mil anos antes de Darwin. Há de fato uma vasta tradição de ciência e filosofia árabes que é com muita frequência, mais do que deveria, ignorada pelo ocidente. Muito se fala da contribuição da filosofia grega para a modernidade, que de fato foi importante, mas se negligencia a enorme influência árabe sobre as universidades medievais, que tiveram papel relevante na revolução cientifica do século XVII, ou o fato histórico de que, quando os escritos gregos estavam perdidos na Europa, foram pensadores árabes que reintroduziram ideias de Aristóteles, Platão e outros pensadores da Grécia clássica.
Devemos ter cuidado, contudo, com esses relatos a respeito de precursores de ideias darwinistas, e ainda mais cuidado com teses que buscam minar originalidade do pensamento de Darwin sobre evolução. Ao longo da história das ciências, ainda mesmo no século XIX, estas descobertas têm aparecido aqui e ali. Para muitas pessoas, a forma como a ciência funciona ainda é algo difícil de compreender, assim como os argumentos e a lógica usada por Darwin. Nesse contexto, as afirmações de que existiram pessoas que foram precursores de Darwin, tendo antecipado suas ideias, ganha mais repercussão do que deveriam. Não que não sejam notícias interessantes. O problema é o sensacionalismo com que são tratadas. Frente a tais desafios, nós acreditamos muito na importância de formar cidadãos que compreendam melhor como se faz ciência, e não somente que sejam acossados por enormes quantidades de conteúdos científicos; e na importância de que se compreendam as ideias evolutivas, mesmo – e quiçá principalmente – quando alguém se propõe a criticá-las.
Considerem, primeiro, que uma teoria científica não se resume a uma ideia. Uma teoria se caracteriza por sua sistematicidade, reunindo um conjunto de ideias e afirmações de modo organizado, coordenado, de maneira a dar sentido e explicar fenômenos no mundo. A teoria de Darwin, por exemplo, não se limita à seleção natural, ou à luta pela existência, mas reúne grande número de ideias, que se conectam umas às outras. Vejamos algumas delas na lista a seguir: 1. A ideia de que ocorre evolução. 2. O compromisso de que evolução é algo a ser explicado em termos naturalistas, sem apelar a fatores sobrenaturais. 3. A ideia de que todas as espécies são aparentadas umas com as outras. 4. A proposição de que esse padrão de parentesco se dá por ancestralidade comum, que Darwin exprime metaforicamente falando numa “árvore da vida”, o que rompe com a ideia anterior de progresso numa “escada da natureza” (scala naturae). 5. A luta pela existência e a seleção natural como processos evolutivos. 6. A herança de caracteres adquiridos, que tem papel na teoria de Darwin, mas muitos insistem em associar somente com Lamarck. 7. A ideia de que características favoráveis à obtenção de recursos para sobrevivência e reprodução podem ser herdadas. 8. As relações da evolução, entendida conforme a teoria, com a explicação de grande diversidade de fenômenos biológicos – instinto, comportamento, desenvolvimento, relações entre organismos, fósseis etc. Aliás, este último ponto pode até mesmo ser considerado um dos principais fatores para a teoria darwinista ter sido largamente aceita: sua capacidade de unificar, sob o mesmo guarda-chuva teórico, uma grande quantidade de fenômenos antes explicados de maneira relativamente desarticulada.
Se examinarmos os trechos da obra de al-JāḥiẓKitāb al-Hayawān (O livro dos animais, em tradução livre), que foram reproduzidas pela mídia, teremos motivos sem dúvida para admiração. Não cabem dúvidas de que estamos diante de um grande pensador do século IX d.C. Assim, é importante que tenham clareza, não se trata aqui de questionar as qualidades de al-Jāḥiẓ, não há motivo para isso. O ponto em questão é se temos de fato nessa obra a “teoria da evolução” que seria formulada por Darwin mil anos depois. Vejamos alguns trechos:
“Os animais estão envolvidos numa luta pela existência e pelos recursos, para evitar serem comidos e se reproduzirem”.
“Os fatores ambientais influenciam nos organismos fazendo com que desenvolvam novas características para assegurar a sobrevivência, transformando-os assim em novas espécies.”
“Os animais que sobrevivem para se reproduzir podem transmitir suas características exitosas a seus descendentes”.
Não há dúvida de que, formuladas mil anos antes do século XIX, estas são ideias que devem trazer assombro ao leitor, aliás, tanto assombro quantos os prenúncios de ideias que hoje associamos com o darwinismo na obra do filósofo grego Empédocles, para lembrar outro pensador por vezes citado – também equivocadamente – como descobridor precoce da teoria darwinista.
Contudo, considerando a teoria darwinista, vemos primeiro que temos aí algumas ideias que são similares a ideias que fazem parte daquela teoria, mas não temos A TEORIA, em sua diversidade e sistematicidade de ideias. Segundo, podemos também ver que, assim como temos semelhanças, temos também importantes diferenças. Há aí um tipo de raciocínio teleológico (vejam os itálicos nas afirmações acima) que não corresponde à teleologia que encontramos em Darwin: Os animais lutariam para evitar serem comidos e se reproduzirem, para transmitir características exitosas a seus descendentes. Se há uma teleologia em Darwin – o que, em si, é debatido pela comunidade acadêmica –, ela não tem essa natureza direta, mas opera de uma maneira que requer, para seu entendimento, um raciocínio funcional e comparativo. Nesse raciocínio, consideramos como organismos dotados de características que variam entre si (por exemplo, garras mais ou menos fortes, pernas mais ou menos robustas, cérebros mais ou menos volumosos) podem ter distinta performance ao utilizar essas características funcionalmente para obter recursos, os quais são usados para sobrevivência e reprodução. Não podemos nos estender sobre esse ponto na presente postagem, mas o leitor pode ponderar sobre a diferença entre duas maneiras de pensar: (1) pensar na busca de uma finalidade por alguma deliberação dos animais (ou de seu criador; mais sobre isso abaixo); e (2) pensar num processo seletivo que preserva nas populações características variantes que, não sendo planejadas, cumprem melhor ou pior alguma função na busca por alimento, abrigo, ou na proteção contra predadores ou parasitas, nas condições de vida a que estão sujeitos os organismos.
Outro ponto em que o raciocínio de al-Jāḥiẓ difere daquele que encontramos em Darwin diz respeito ao papel dos fatores ambientais. Em al-Jāḥiẓ, temos uma relação bastante direta, assumindo-se que fatores ambientais fazem com que organismos desenvolvam novas características para assegurar sua sobrevivência, transformando-os assim em novas espécies. Ora, essas são ideias muito mais próximas do chamado neo-Lamarckismo (muitas vezes confundidas com ideias de Lamarck) do que de Darwin. Em Darwin, os fatores ambientais atuam como uma espécie de filtro ou peneira que favorece determinadas características que já existem nos organismos, de acordo com sua maior ou menor funcionalidade face à performance necessária para obter recursos, como explicado acima. Além disso, espécies não se originam, para Darwin, diretamente pelo papel dos fatores ambientais, mas devido a divergências oriundas das diferenças de atuação da seleção natural sobre variantes encontradas nas populações de organismos.
Claro, importante ter em vista que não fui em busca do texto original de al-Jāḥiẓ para tecer esses argumentos. Isso viraria em si um projeto de pesquisa em história da ciência, que não pretendo desenvolver. Tudo que estou fazendo é colocar em questão, e assim provocar no leitor o mesmo tipo de salutar ceticismo, diante de afirmações sensacionalistas, que apelam a pessoas supostamente à frente de seu tempo, que poderiam, um milênio antes, descobrir as mesmas ideias que levariam tanto tempo para emergir. Esse tipo de história heróica, lendária, mítica cabe bem num roteiro de cinema. Na história, contudo, ninguém está jamais à frente de seu tempo, mas apenas explora condições de possibilidade objetivamente colocadas num dado tempo histórico. Podemos não ter informação suficiente sobre essas possibilidades e, então, nos maravilhamos com aquilo que não antevíamos. Maior atenção aos detalhes dos períodos históricos costuma evitar isso.
Por fim, vale considerar que al-Jāḥiẓ era mais similar a um teólogo natural do que a um cientista naturalista, como Darwin. Robert J. Asher desenvolve bem esse argumento em texto no Huffpost. Como os teólogos naturais britânicos, a exemplo de William Paley ou John Ray, seu principal propósito ao estudar os animais era buscar provas da existência do Criador, conforme a escola racionalista de teologia islâmica a que pertencia (Muʿtazila). A teleologia encontrada nas estruturas e nos comportamentos dos animais decorreria mais do planejamento desse criador do que da deliberação dos próprios animais. Não se trata, aqui, de criticar ou defender tal proposta teológica, mas de salientar as grandes diferenças em relação à proposta darwinista de explicar a evolução dos organismos de uma perspectiva naturalista. Vale sempre lembrar que esta é uma perspectiva legítima e bem-sucedida para explicar o mundo, que caracteriza a ciência desde meados do século XIX. Igualmente, vale sempre lembrar que isso não significa, claro, que não existam outras perspectivas legítimas, das quais deveríamos nos aprazer para coexistirmos com maior riqueza cultural, em vez de nos perdemos em buscas inúteis de supremacia.
Isso me serve para ilustrar um último ponto. É muito comum as pessoas se maravilharem com a ideia de seleção natural presente em autores anteriores a Darwin e Wallace (este, aliás, também proponente de parte das ideias reunidas por Darwin em sua teoria, mas não todas; mas isso é assunto para outra postagem). Contudo, elas perdem de vista que seleção natural era uma ideia comum na teologia natural britânica (é dela que falo agora, porque teria de investigar se ideia semelhante aparece em al-Jāḥiẓ, coisa que não fiz ainda).
Nada há de original em Darwin e Wallace ao usarem essa expressão. A grande novidade conceitual é que ambos os naturalistas deslocaram a seleção natural de um papel secundário e negativo, na criação, a um papel primário e positivo, na evolução. A seleção natural era, para os teólogos naturais britânicos, uma espécie de jardineiro dos jardins do Senhor. Como as espécies teriam sido criadas pelo Criador como tipos ideais e perfeitos, qualquer variação decorrente da luta pela sobrevivência, e do fato de que esta demandava ajustar-se a ambientes diversos, somente poderia afastar as espécies da perfeição. Era aí que a seleção natural tinha seu papel: ela eliminaria essas variações, de modo a preservar o tipo ideal criado. Por isso, o papel da seleção era secundário e negativo.
Nos trabalhos de Darwin e Wallace, ao contrário, a seleção natural é a força criativa na evolução, dando origem a adaptações e espécies, e não há tipos ideais, mas populações formadas por muitas variantes, com distintas performances perante o ambiente, que então as peneira via seleção natural. A seleção tem papel primário e positivo nessas teorias, muito distinto do papel na teologia natural britânica, malgrado o uso do mesmo termo.
Temos argumentado que algumas atitudes científicas diante do conhecimento e do mundo deveriam ser ensinadas nas aulas de ciências, em vez de se passar horas a lotar os estudantes de conteúdos. Uma delas é um salutar ceticismo que nos impele a sermos críticos antes de aceitarmos o que nos é dito. Se algo é dito, quais são as razões, quais os fundamentos, qual o quadro geral, a big picture na qual essa coisa que está sendo dita se enquadra. A afirmação deve ser escrutinada rigorosamente, com o máximo de nossos poderes racionais e, se ela sobrevive à crítica, devemos nos maravilhar com ela e então tirar as consequências que nos oferece.

Charbel N. El-Hani
Instituto de Biologia/UFBA

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