Pesquisadores europeus desenvolvem um molde artificial, mas produzido a partir de células-tronco, para estudar a evolução do feto com mais de 14 dias
Dizem que o momento mais importante da vida não é quando nascemos, nem quando morremos, nem quando nos casamos, e sim no dia que gastrulamos. Ninguém pode se lembrar dessa fase, porque acontece quando somos um embrião de 14 dias. As células-tronco quase idênticas do embrião começam a migrar daqui para ali e a formar um corpo. Se tudo correr bem, aos sete dias já se formou o plano geral do que será uma pessoa, com a semente de seus órgãos, inclusive um coração que logo começará a pulsar. A essa altura medimos um milímetro e meio, mais ou menos como a ponta de um lápis bem afiado.
Durante esse processo acontecem frequentes problemas que provocam malformações ou abortos naturais sem que os pais nem seus médicos tenham como saber o motivo. Apesar da sua máxima importância, a gastrulação humana jamais pôde ser observada enquanto ocorria. Um estudo publicado na quinta-feira fez isso pela primeira vez.
“Até agora não houve forma de entrar neste processo e sem ele não podemos entender como as células constroem um ser humano”, resume o biólogo espanhol Alfonso Martínez Árias, da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e principal autor do estudo.
Quatorze dias é o tempo máximo durante o qual embriões humanos são cultivados fora do útero segundo a barreira legal imposta por muitos países, porque a partir desse ponto se pode falar que há um indivíduo: o embrião já não pode se dividir para formar duas pessoas (gêmeos). Depois disso se abre uma caixa-preta que só foi revelada no caso de ratos, macacos e outras espécies; muito úteis para entender o processo geral, mas sem serventia para revelar os detalhes específicos que definem um ser humano.
A equipe de Martínez colheu células-tronco de embriões humanos e as cultivou em laboratório acrescentando uma molécula que leva ao início repentino da formação de uma estrutura tridimensional viva. Passados três dias, surgiram a parte superior do corpo —mais avultada, com os precursores do coração, intestinos, músculos e ossos do tórax— e a inferior, menor. O modelo já contém os três grandes tipos de tecidos que são capazes de gerar todos os órgãos do corpo.
Em um estudo publicado nesta quinta-feira na revista Nature, a equipe demonstra que há mais de 1.000 genes que diferenciam a gastrulação humana da do camundongo. Também observam que a atividade genética em seus modelos embrionários artificiais é muito semelhante à que acontece em um embrião humano real de 18 a 21 dias. A caixa-preta da formação do mapa do corpo foi aberta, ainda que utilizando algo que basicamente não é um embrião humano.
“Estes modelos nos permitirão compreender por que acontecem muitos dos erros de programação que acabam em malformações, por exemplo da escoliose na coluna vertebral, ou em abortos, e inclusive nos permitirá testar novos medicamentos”, ressalta Martínez. Além disso, diz, evitam-se dilemas éticos.
Esses embriões artificiais não têm cérebro. Isso ocorre porque a molécula necessária para criá-los, chamada Chiron, inibe sua formação, de modo que não contém o germe do órgão capaz de pensar e sentir e que mais define o que é um humano. Tampouco estão presentes os tecidos que formariam a placenta que conecta o feto à sua mãe. “Mesmo que se tentasse implantar um destes embriões em um útero, nunca resultariam numa gravidez”, ressalta Martínez, que fez seu trabalho em colaboração com o Instituto Hubrecht (Países Baixos).
A pesquisa implica a criação não de um organoide, mas sim de uma semente capaz de simular um organismo inteiro com quase todos os seus órgãos
O estudo já aponta como começar a manipular esses embriões artificiais para verificar novas chaves da formação dos órgãos. Os pesquisadores veem, por exemplo, que aos três dias se formam blocos de tecido que vão aparecendo um após o outro para que o corpo cresça em comprimento para formar as costelas e a coluna vertebral —uma estrutura de crescimento “totalmente modular”—. O trabalho detalha duas moléculas que são capazes de interromper por completo o desenvolvimento do embrião ou de eliminar a formação do intestino e do coração.
A origem desta pesquisa remonta aos primórdios da fecundação in vitro, nos anos 70, e vai um passo além no uso de células-tronco. Até agora, elas serviam para gerar organoides como minicérebros ou minifígados adequados a testes de medicamentos ou para ensaiar modelos animais para transplantes em humanos. Essa pesquisa implica a criação não de um organoide, mas sim de uma semente capaz de simular um organismo inteiro com quase todos os seus órgãos.
Os responsáveis pelo trabalho só cultivaram esses embriões por quatro dias, mas acreditam que será possível ampliar esse prazo em uma ou duas semanas, embora não pretendam fazê-lo em curto prazo. “Não se trata de criar embriões, mas sim de aprender, e com este novo modelo temos um sistema para formular e responder a muitas perguntas”, explica Martínez.
“Os embriões desta idade se perdem nos abortos, por isso até agora não pudemos estudar a gastrulação”, explica Anna Veiga, que pesquisa embriões no Instituto de Pesquisa Biomédica de Bellvitge (Espanha). “Isto dará muitíssimas pistas sobre problemas no desenvolvimento humano”, ressalta.
Até agora, uma das maiores perguntas da biologia era como cada célula-tronco do embrião sabe aonde ir e o que fazer a partir dos 14 dias para começar a formar o organismo. Se as células-tronco são extraídas de um embrião humano, elas são capazes de se reproduzir continuamente —são imortais—, mas por si só nunca começarão o processo de formação de um organismo. Porém, se forem injetadas num embrião de camundongo, elas começam esse processo. Por quê? Este novo modelo “é um sistema tão elegante e tão simples que é muito chamativo e vai permitir saber o que acontece nesse início”, ressalta Ángel Raya, diretor do Centro de Medicina Regenerativa de Barcelona. O pesquisador acredita que se trata de uma descoberta tão fundamental que ainda não é possível prever suas “milhares de aplicações possíveis”, mas acrescenta que “oferecerá desde já um conhecimento que estará nos livros didáticos”.
O estudo já aponta como começar a manipular esses embriões artificiais para verificar novas chaves da formação dos órgãos. Os pesquisadores veem, por exemplo, que aos três dias se formam blocos de tecido que vão aparecendo um após o outro para que o corpo cresça em comprimento para formar as costelas e a coluna vertebral —uma estrutura de crescimento “totalmente modular”—. O trabalho detalha duas moléculas que são capazes de interromper por completo o desenvolvimento do embrião ou de eliminar a formação do intestino e do coração.
A origem desta pesquisa remonta aos primórdios da fecundação in vitro, nos anos 70, e vai um passo além no uso de células-tronco. Até agora, elas serviam para gerar organoides como minicérebros ou minifígados adequados a testes de medicamentos ou para ensaiar modelos animais para transplantes em humanos. Essa pesquisa implica a criação não de um organoide, mas sim de uma semente capaz de simular um organismo inteiro com quase todos os seus órgãos.
Os responsáveis pelo trabalho só cultivaram esses embriões por quatro dias, mas acreditam que será possível ampliar esse prazo em uma ou duas semanas, embora não pretendam fazê-lo em curto prazo. “Não se trata de criar embriões, mas sim de aprender, e com este novo modelo temos um sistema para formular e responder a muitas perguntas”, explica Martínez.
“Os embriões desta idade se perdem nos abortos, por isso até agora não pudemos estudar a gastrulação”, explica Anna Veiga, que pesquisa embriões no Instituto de Pesquisa Biomédica de Bellvitge (Espanha). “Isto dará muitíssimas pistas sobre problemas no desenvolvimento humano”, ressalta.
Até agora, uma das maiores perguntas da biologia era como cada célula-tronco do embrião sabe aonde ir e o que fazer a partir dos 14 dias para começar a formar o organismo. Se as células-tronco são extraídas de um embrião humano, elas são capazes de se reproduzir continuamente —são imortais—, mas por si só nunca começarão o processo de formação de um organismo. Porém, se forem injetadas num embrião de camundongo, elas começam esse processo. Por quê? Este novo modelo “é um sistema tão elegante e tão simples que é muito chamativo e vai permitir saber o que acontece nesse início”, ressalta Ángel Raya, diretor do Centro de Medicina Regenerativa de Barcelona. O pesquisador acredita que se trata de uma descoberta tão fundamental que ainda não é possível prever suas “milhares de aplicações possíveis”, mas acrescenta que “oferecerá desde já um conhecimento que estará nos livros didáticos”.
Ainda resta um passo crucial para validar esse modelo, pois não se sabe até que ponto ele reflete a biologia de um embrião real. Para comprovar isso, seria preciso cultivar embriões além da linha vermelha dos 14 dias e compará-lo com os gastruloides
Durante a gastrulação acontecem muitos problemas na formação do embrião, provocados por 1.000 coisas, de razões congênitas a agressões externas como o álcool, os medicamentos, produtos químicos ou infecções que podem acabar em um aborto sem que os pais jamais saibam o porquê. “Um dos aspectos mais interessantes deste trabalho é que as células humanas embrionárias conseguem se organizar de forma autônoma, sem necessidade de se relacionarem com as células que formam a placenta”, ressalta a investigadora espanhola Marta Shahbazi, cuja equipe bateu em 2019 o recorde de cultivo de um embrião humano fora do útero: 13 dias, perto do limite de 14 estabelecido por lei no Reino Unido, onde ela trabalha.
O novo modelo não só “elimina as barreiras éticas aplicáveis aos embriões humanos” como também “nos permitirá estudar o embrião humano em um contexto único, sem as restrições da placenta de outros tecidos extraembrionários”, destaca. “É uma nova ferramenta muito poderosa para estudar os mecanismos moleculares de nosso desenvolvimento e nos ajudará a compreender por que alguns embriões não conseguem prosperar”, afirma.
Entretanto ainda resta um passo crucial para validar esse modelo, pois não se sabe até que ponto ele reflete a biologia de um embrião real. Para comprovar isso, seria preciso cultivar embriões humanos além da linha vermelha dos 14 dias e compará-lo com os gastruloides, explica o pesquisador Robin Lovell-Badge em entrevista ao Science Media Centre. Isto é impossível no Reino Unido e muitos outros países, porque as leis proíbem. “Se a lei mudasse, bastariam alguns poucos embriões humanos reais para validá-lo”, ressalta o cientista, um assunto tão polêmico que nem sequer os peritos neste campo se põem de acordo a respeito.
Durante a gastrulação acontecem muitos problemas na formação do embrião, provocados por 1.000 coisas, de razões congênitas a agressões externas como o álcool, os medicamentos, produtos químicos ou infecções que podem acabar em um aborto sem que os pais jamais saibam o porquê. “Um dos aspectos mais interessantes deste trabalho é que as células humanas embrionárias conseguem se organizar de forma autônoma, sem necessidade de se relacionarem com as células que formam a placenta”, ressalta a investigadora espanhola Marta Shahbazi, cuja equipe bateu em 2019 o recorde de cultivo de um embrião humano fora do útero: 13 dias, perto do limite de 14 estabelecido por lei no Reino Unido, onde ela trabalha.
O novo modelo não só “elimina as barreiras éticas aplicáveis aos embriões humanos” como também “nos permitirá estudar o embrião humano em um contexto único, sem as restrições da placenta de outros tecidos extraembrionários”, destaca. “É uma nova ferramenta muito poderosa para estudar os mecanismos moleculares de nosso desenvolvimento e nos ajudará a compreender por que alguns embriões não conseguem prosperar”, afirma.
Entretanto ainda resta um passo crucial para validar esse modelo, pois não se sabe até que ponto ele reflete a biologia de um embrião real. Para comprovar isso, seria preciso cultivar embriões humanos além da linha vermelha dos 14 dias e compará-lo com os gastruloides, explica o pesquisador Robin Lovell-Badge em entrevista ao Science Media Centre. Isto é impossível no Reino Unido e muitos outros países, porque as leis proíbem. “Se a lei mudasse, bastariam alguns poucos embriões humanos reais para validá-lo”, ressalta o cientista, um assunto tão polêmico que nem sequer os peritos neste campo se põem de acordo a respeito.
Reprodução: EL PAIS
Novo modelo de embrião humano mostra uma fase nunca observada da vida
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Oleh
Pedro Rios